Em decisão proferida no domingo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino decidiu que a Lei de Anistia de 1979 não pode proteger os responsáveis pelos desaparecimentos forçados da ditadura militar. O núcleo de sua decisão é o argumento de que a ocultação de cadáver se trata de um crime continuado, cujos efeitos não cessam até a localização do corpo.
A Coalizão saúda a decisão, que é conforme os parâmetros internacionais direitos humanos e espera que o STF se alinhe definitivamente à normativa internacional neste tema.
É preciso reforçar que, para além da questão do crime continuado, que abarca especificamente a prática do desaparecimento forçado, a Lei de Anistia é frontalmente contrária aos pactos internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário. Não à toa, o país já foi condenado por duas vezes (caso Guerrilha do Araguaia, caso Herzog) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão dos crimes da ditadura. Nas duas ocasiões, a Corte manifestou que a Lei de Anistia de 1979 não pode ser um obstáculo ao direito à justiça das vítimas e que ela é incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil tem o dever e a obrigação de dar cumprimento.
Sobre a Lei de Anistia, há duas ações em curso no Supremo. São a ADPF 153, julgada em 2010, mas no âmbito da qual há decisões pendentes, e a ADPF 320, impetrada pelo PSOL em 2014 e que tem sido objeto de maior atenção recentemente, em especial diante da atuação incisiva do Instituto Vladimir Herzog para tentar coloca-la em pauta. É inexplicável que, há dez anos, essas ações estejam aguardando andamento e um pronunciamento por parte da Corte Suprema do país, em confrontação com o direito das vítimas de se obter uma resposta do sistema de justiça em relação a este tema.
É dever do Supremo Tribunal Federal retomar a discussão sobre os crimes da ditadura militar, considerando que são graves violações aos direitos humanos, imprescritíveis e impassíveis de anistia, segundo a ordem jurídica internacional e a melhor interpretação da Constituição de 1988 conforme os preceitos de direitos humanos.
O STF tem cumprido um papel exemplar em relação à mais recente tentativa de golpe de Estado comandada por Bolsonaro e pelos militares nos últimos anos. As manifestações de seus ministros nos autos, bem como seus posicionamentos públicos, são inequívocas em afirmar que a impunidade dos golpistas não é uma opção. Que não é possível pacificar o país e consolidar a democracia sem a devida responsabilização dos criminosos.
Os movimentos que compõem a Coalizão Memória, os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os ex-presos políticos sempre afirmaram a mesma coisa em relação à anistia de 1979. Mas as elites políticas do país optaram, até hoje, pela via do esquecimento, da reconciliação extorquida e do silenciamento forçado, sacrificando o direito das vítimas e familiares em conhecer a verdade, exercer a memória e obter justiça em relação a esses crimes contra a humanidade. Essa opção abriu caminho para a nova tentativa de golpe.
Agora, quando se forma um relativo consenso social em torno da necessidade de responsabilização dos que atentaram contra a democracia, e questão sobre os crimes do passado se torna inevitável. Se é inaceitável uma anistia hoje, a anistia de ontem deve ser igualmente inaceitável.
Nesse sentido, o STF deve ser consistente, e emanar preceitos que apontem para uma responsabilização na apenas da mais recente tentativa de golpe, mas também em relação ao último golpe de Estado efetivado contra a democracia brasileira em 1964. Temos convicção de que a recente decisão do Ministro Dino é sinal de que o Supremo entendeu a envergadura de sua tarefa histórica neste momento. Seguiremos, como sociedade civil, cobrando que o STF finalmente retome o debate sobre a Lei de Anistia de 1979.